BBC: Greves e pedidos de demissão em massa. O movimento que pode resultar em ‘CLT’ nos EUA

Na última segunda-feira, (22/11), Kit Stoll, de 21 anos, se demitiu do posto de barista em um café em Nova Jersey, Estados Unidos. A crescente insatisfação de Stoll com o emprego, no qual permaneceu por cerca de um ano, as frequentes broncas aos gritos da chefia e o baixo custo-benefício entre muito trabalho e pouco salário poderiam ter sido uma experiência quase solitária, mas nos últimos meses foram acompanhadas praticamente em tempo real por centenas de milhares de pessoas.

Kit Stoll, de 21 anos, se demitiu esta semana do posto de barista de um café em Nova Jersey e postou sua experiência em fórum antitrabalho

Stoll postou sua história – inclusive a demissão – em um fórum da plataforma Reddit batizado de Antiwork Movement (ou movimento anti-trabalho, em português). “Tirei meu avental e saí. Assustador no início, libertador depois”, escreveu Stoll apenas horas após sua demissão, em mensagem que recebeu centenas de comentários e milhares de likes em minutos. “Muito obrigado a vocês por todo o amor e apoio em meio ao momento mais estressante que já vivi”, acrescentou Stoll.

Relatos como o de Kit Stoll, de demissões ou episódios de abusos no trabalho, se acumulam aos milhares neste fórum. São casos de pessoas que foram convocadas a trabalhar no dia do próprio casamento ou na hora do velório da bisavó. Trabalhadores que receberam advertências por irem duas vezes ao banheiro em cinco horas de turno ou que foram demitidos por chegarem atrasados após uma sessão de hemodiálise ou de quimioterapia. E gente que, mesmo precisando do dinheiro – como Stoll, que vive com os pais e reduziu seus gastos ao mínimo – resolveu usar parte das economias e ficar fora do mercado de trabalho por ao menos um tempo.

Revolucionário ou preocupante?

O espaço virtual já existia antes da pandemia de Covid-19, mas aumentou ao menos dez vezes durante os últimos 18 meses. O fórum antitrabalho se tornou um sinal de um problema que tem sido apontado como grave e profundo na economia americana: há vagas de sobra, mas não há trabalhadores que as aceitem nas condições dadas, com salário baixo e sem garantias trabalhistas.

Estimativas atuais dão conta de ao menos 10 milhões de postos de trabalho em aberto. Os EUA têm taxa de desemprego de 4,6%. No Brasil, o índice chega a 13,2%.

A falta de trabalhadores nos Estados Unidos tem sido notada há quase um ano, mas boa parte dos analistas de mercado e economistas atribuía o fenômeno ao generoso auxílio a desempregados na pandemia, ao alto índice de casos e mortes por Covid-19 e ao fato de que crianças seguiam em aulas remotas, em casa. Tudo isso, diziam, afugentava os trabalhadores do mercado de trabalho.

Mas a tese se mostrou ao menos parcialmente falsa. Apenas em setembro, mês em que o auxílio pandemia acabou definitivamente, em que as crianças retornaram a aulas presenciais, e em que a pandemia arrefeceu em boa parte do país, quase 4,5 milhões de pessoas pediram as contas.

O fato levou o banco Goldman Sachs a produzir um relatório em que aponta que a falta de trabalhadores nos EUA pode ser um “fenômeno de longo prazo” e representar uma ameaça ao crescimento da economia americana.

“Um risco de longo prazo para a participação da força de trabalho (na produção) é que as preferências e estilos de vida de alguns trabalhadores podem ter mudado depois de um ano e meio fora da força de trabalho. A melhor maneira de medir essa mudança no gosto pelo trabalho é provavelmente por meio da mídia social. Como resultado, vemos algum risco de que alguns trabalhadores optem por permanecer fora da força de trabalho por mais tempo, desde que tenham condições financeiras para fazê-lo”, escreveu o economista do banco Joseph Briggs, no relatório produzido há duas semanas.

No último dia 21, a Forbes, principal revista de economia e finanças do mundo, publicou um artigo que dizia que a “grande demissão”, como também tem sido chamado o fenômeno, “é uma revolução dos trabalhadores”, “um levante contra chefes ruins e empresas surdas aos seus funcionários, que se recusam a pagar bem e tiram vantagens deles”.

A carreira de 6 anos de Kit Stoll no setor de comércio e serviço nos EUA é um testamento sobre isso. Segundo Stoll contou à BBC News Brasil, clientes de supermercados chegaram a jogar produtos sobre seu corpo e rosto, sem que os superiores interviessem.

E quando a pandemia estourou, ninguém sequer avisou que seu trabalho em uma cafeteria universitária seria substituído por um totem eletrônico de produtos. “Cheguei pra trabalhar e descobri que tinha uma máquina no meu lugar”, diz.

“Eu sinto que uma coisa vital neste movimento antitrabalho é que, embora o logotipo do fórum seja alguém deitado, não se trata de querer ser preguiçoso. Trata-se de mostrar seu próprio valor e saber seu próprio valor. A pessoa não vale um salário mínimo, não vale US$12 ou US$ 7,50 por hora, dependendo de onde mora. Ela vale muito mais e tenho esperança de que possamos mudar algumas coisas. E acho que as corporações deveriam ter medo de nós”, diz Stoll.

Ela conta ter feito um cálculo simples: multiplicou o número de horas pelo salário mínimo oferecido em cada um dos 50 Estados americanos e confrontou os ganhos com os custos de aluguel, alimentação, transporte, saúde e educação.

“Conclui que é impossível viver com um salário mínimo nesse país, mesmo uma vida simples, não importa onde”, disse ela. Uma pesquisa feita pelo MIT no começo do ano chegou à mesma conclusão, mesmo com o aumento no salário mínimo proposto pelos democratas, de US$ 15 por hora.

Leis trabalhistas

Para Alexander Colvin, especialista em leis e conflitos do trabalho da Universidade Cornell, os Estados Unidos passam por um momento chave que pode alterar as características do capitalismo local, conhecido por seu mercado de trabalho com praticamente nenhuma regulação.

“A analogia que vejo é entre agora e a economia pós-Segunda Guerra Mundial. Houve essa forte recuperação (econômica) no pós-guerra e foi um período de grande conflito, muitas greves que realmente estavam sendo impulsionadas pela demanda pelos benefícios da vitória. Havia a ideia de que os trabalhadores haviam contribuído tanto nas fábricas quanto nos campos de batalha para a vitória. Agora que a guerra havia acabado, o pensamento era: ‘OK, nós sacrificamos durante a guerra. Agora é hora de ver os benefícios disso’. A economia pandêmica e pós-pandêmica, têm algumas semelhanças com isso, estamos vendo esta recuperação de um período de sacrifício. As expectativas das pessoas mudam e elas sentem que merecem mais”, analisa Colvin.

Ele cita que não só o movimento antitrabalho tem pressionado os patrões, mas que os EUA vivem uma alta histórica no número de greves.

Mais de 10 mil trabalhadores da fabricante de equipamentos agrícolas John Deere entraram em greve no começo de outubro pela primeira vez em 35 anos. Outros 1,4 mil funcionários das fábricas de cereal da Kellogg largaram os postos no mesmo período.

E a aprovação popular aos sindicatos (68%) é a mais alta desde 1965, segundo uma pesquisa do Instituto Gallup divulgada em setembro de 2021.

“Há potencial para uma mudança real na direção de reconhecer mais direitos para os funcionários no trabalho. Os EUA se destacam como o país rico que não oferece proteções realmente básicas, como direito à licença médica remunerada, direito a férias básicas, a não ser demitido de forma injusta e arbitrária sem aviso prévio. O país tem mercado de trabalho totalmente desregulamentado. Isso está começando a mudar. E acho que essa mudança pode se acelerar”, diz o especialista.

A título de comparação, todos os direitos que Colvin citou são garantidos no Brasil a quem é contratado sob o regime de Consolidação das Leis Trabalhistas, a CLT.

Segundo ele, não existe uma contradição entre leis trabalhistas e crescimento econômico acelerado, argumento frequentemente levantado pelos que defendem regulação mínima. O exemplo disso estaria dentro do próprio EUA: a Califórnia é um dos Estados que oferecem mais garantias aos empregados e é ao mesmo tempo o maior PIB do país e celeiro de inovação tecnológica.

Mas essas mudanças não virão espontaneamente. E por isso mesmo nos fóruns antitrabalho os trabalhadores tentam estimular uma espécie de boicote laboral das festas de fim de ano.

O período que se inicia com a Black Friday costuma ser uma temporada aquecida de contratações no varejo e no comércio, graças à alta das vendas.

Eventualmente, salários mais altos são oferecidos para atrair esses trabalhadores, mas os benefícios e os contratos costumam ser temporários.

Parte dos envolvidos no atual movimento trabalhista americano advoga que todos os trabalhadores que puderem se mantenham em casa e forcem perdas de lucros para as grandes empresas no período do ano mais rentável para elas.

“O ponto em que estamos é como se estivéssemos esperando um lado piscar. Quem vai piscar primeiro? A indústria vai desmoronar e tornar as coisas melhores para os funcionários? Ou eles estão apenas jogando um jogo de paciência, achando que o movimento antitrabalho vai fracassar (porque os trabalhadores ficarão sem dinheiro e terão que voltar aos postos)? Estamos indo para um ponto de ruptura massivo. É o suficiente agora? Não, mas pode ser? sim. E eu acho que enquanto o movimento continuar, eles serão forçados a fazer mudanças”, afirmou à BBC News Brasil Steve Rowland, um ex-gerente de comércio com três décadas de carreira que acabou demitido durante a pandemia.

Rowland afirma que a demissão e o tempo em casa o fizeram ver como era tóxico o ambiente de trabalho que ele comandava. Para compartilhar as experiências de trabalhadores e gerentes de serviços como ele, Rowland criou o podcast “A zona de guerra do varejo”.

Parte das empresas do varejo tem tentado mostrar adequações às demandas da força de trabalho. Algumas têm chegado a oferecer US$17 por hora, ou bônus de contratação de US$500. Outras oferecem auxílio-faculdade. Outras ainda têm garantido folgas em feriados, como o Thanksgiving, uma novidade na indústria.

Nada disso, no entanto, foi o suficiente até agora para reverter a tendência de falta de trabalhadores. “Eles estão procurando por horas garantidas, por salários competitivos, por benefícios, já que o seguro saúde nos EUA é muito caro. O setor precisa ter muito mais foco no que os trabalhadores realmente desejam. Eles não querem festas da pizza”, diz o ex-gerente.

A vida de Rowland é um exemplo disso. Aos 51 anos, ele recebe com frequência convites para voltar a ser gerente em todo tipo de comércio. “Eu nem respondo mais. Não tenho desejo de ser um gerente nunca mais. Eu e minha esposa tivemos muitas conversas sobre como realmente simplificar nossa vida. Hoje eu descarrego caminhões e faço serviços braçais, na Carolina do Sul. Não tenho equipe, não tenho que dar ordens, nem ter responsabilidades. E isso é algo que tento dizer às pessoas: você pode sair daquilo em que está, desde que aceite alguns sacrifícios. É a primeira vez em meus 30 anos de trabalho que estou absolutamente em paz, contente e feliz com o que faço”, disse Rowland.

FONTE: BBC NEWS