Crime contra Moïse também revela relações de exploração do trabalho, aponta jurista

O assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe em um quiosque na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, em 24 de janeiro, está inserido em um contexto que mistura o racismo estrutural, xenofobia, crueldade, milícias e também exploração de trabalho. É o que destaca o advogado criminalista Roberto Tardelli, integrante do grupo Prerrogativas, que reúne advogados, juristas e profissionais do Direito de todo o país, em entrevista a Glauco Faria, do Jornal Brasil Atual.

O jovem foi espancado até a morte por cobrar as diárias por dois dias trabalhados no quiosque Tropicália, onde atuava servindo mesas na praia. De acordo com a família, o estabelecimento devia a ele R$ 200 por serviços prestados. Segundo a mãe, Ivana Lay, em relato ao jornal O Globo, o filho já vinha reclamando que ganhava menos que os colegas. Parte do dinheiro de Moïse a ajudava a pagar o aluguel de uma casa na zona norte do Rio, onde os dois, além de irmãos e primos, moravam.

A farsa da reforma trabalhista

O professor de Direito Silvio Almeida cobrou no Twitter uma investigação por parte do Ministério Público do Trabalho do Rio de Janeiro (MPT-RJ) sobre as condições de trabalho em estabelecimentos da mesma natureza. “A situação de Moïse não é singular e só medidas amplas podem se opor de forma eficiente a essa barbárie”, escreveu. O órgão anunciou a abertura de um inquérito paralelo ao criminal para apurar “possível trabalho sem reconhecimento de direitos trabalhistas, podendo configurar, inclusive, trabalho em condições análogas a de escravo, na modalidade de trabalho forçado, de xenofobia e racismo”, assinalou o MPT-RJ.

Para Tardelli, a investigação é necessária, mas veio tarde. De acordo com ele, muitos trabalhadores, como o jovem congolês, são submetidos a subempregos por uma questão de subsistência. O caso, ainda segundo o jurista, evidencia que não existe a livre negociação entre patrão e empregado preconizada na “reforma” trabalhista, aprovada pelo governo de Michel Temer.

“Estamos atrasados e investigando aquilo que nos é óbvio. Não são relações trabalhistas, mas relações de exploração cruenta, verdadeiramente medievais, da força de trabalho dessas pessoas que não têm poder algum de negociação. O que Moïse poderia fazer? Exigir contrato escrito do dono do quiosque?”, questiona Tardelli. “Se ele fugiu da fome de seu país, tenho certeza que ele não queria passar fome aqui. São milhares de Moïse que devem existir.”

Três homens presos

O advogado também disse estranhar alguns pontos da investigação. Apenas ontem, oito dias após o crime, os agressores foram identificados a partir de um vídeo registrado por uma câmera de segurança do quiosque. Três homens foram detidos e tiveram a prisão decretada pela Justiça do Rio. Eles deverão responder por homicídio duplamente qualificado, impossibilidade de defesa e meio cruel. Até então, apenas dois haviam sido identificados no processo que corre em sigilo.

Um deles é Fábio Silva, vendedor de caipirinhas na praia que, segundo a polícia, confessou ter dado pauladas no congolês. O segundo, Aleson Cristiano Fonseca, se entregou nesta terça admitindo ter cometido as agressões. Ele alegou que “não tinha intenção de matar”. Nesta quarta foi divulgado o nome do terceiro preso, Brendon Alexander Luz da Silva, conhecido como Tota. A polícia afirma que ele aparece nas imagens agredindo o trabalhador.

O proprietário do estabelecimento, que não teve o nome identificado, também negou à polícia que houvesse dívidas com Moïse. Em depoimento, sua defesa também apontou que nenhum dos três homens eram funcionários do quiosque. As agressões contra o jovem, contudo, aconteceram enquanto o quiosque operava normalmente com um atendente no balcão. De acordo com o UOL, o funcionário alegou, em sua defesa, que não acionou a polícia porque estava sem celular. Sem vida, o congolês foi encontrado por policiais ainda amarrado, deitado no chão já sem vida, em uma escada no local.

Barbárie de um país

Há indícios também de que a região do quiosque esteja sob a influência de milícias. Para Tardelli “é sintomático que houvesse câmeras filmando toda a cena, o que não preocupou e nem intimidou os facínoras que o mataram de forma tão brutal como mataram Moïse”. Ele observa que toda essa violência revela “o nível de desagregação institucional que estamos vivendo, muito turbinado por um nível de racismo ‘irrespirável’”.

“É difícil você perceber na praia famílias negras tomando banho de mar. Elas estão trabalhando de forma dura. Quantos de nós na praia já não compramos doces, balinhas, camarão, peixe de crianças de seis, sete, oito, nove anos, de mulheres de 70 carregando muito peso naquela areia que cozinha os pés? Moïse era mais um”, aponta. “Ele não tinha nenhuma capacidade de negociar sua situação (trabalhista) como a maioria não tem capacidade de negociar condição alguma e todos pressionados por uma milícia assassina e aterrorizante. A morte desse rapaz abre um armário muito fétido e que precisamos agora – algo que a sociedade brasileira não está acostumada a fazer – sentir o nosso mau cheiro e resolvê-lo”, adverte o jurista.

FONTE: RBA